domingo, 25 de maio de 2008

'1968 foi muito longe, às vezes até demais'

Bem-vindo a 1968! Desde que teve início este maio em que se completam os 40 anos das manifestações estudantis em Paris, o ano que mudou tudo está sendo lembrado e discutido tanto no âmbito internacional quanto no Brasil. Referência no assunto desde o lançamento de "1968 - O Ano que Não Terminou", em 1988, o escritor e jornalista Zuenir Ventura resolveu, para esta efeméride, entrar novamente na máquina do tempo, só que desta vez para destrinchar as continuidades e as rupturas deste ano tão emblemático.
No livro "1968 - O Que Fizemos de Nós", personagens nacionais de destaque da geração meia-oito expõem suas visões sobre o período e como o pensamento da época se desdobrou nas gerações seguintes. Estão lá o cantor e compositor Caetano Veloso, a historiadora Heloísa Buarque de Hollanda, o economista César Benjamim, o deputado Fernando Gabeira, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o ministro Franklin Martins e o ex-ministro José Dirceu.
O novo livro está sendo lançado numa caixa, com uma edição revista do primeiro. No próximo dia 6, Zuenir lançará a obra em Cachoeiro de Itapemirim, durante a Bienal Rubem Braga (www.bienalrubembraga.com.br). Otimista, o autor acredita que "olhar para o retrovisor" é importante na hora de seguir em frente, como mostra na entrevista a seguir.

· Qual a razão do fascínio que o ano de 1968 exerce até hoje, 40 anos depois?
Esse é um dos grandes mistérios, essa longevidade que faz com que 1968 ainda desperte tanto interesse e atenção. É impressionante como um ano consegue condensar tanto carisma e atração. Claro que há hipóteses, muitas coisas aconteceram neste ano, no plano da política, da tecnologia, do comportamento. Ele é a síntese de uma década em que o homem foi à Lua, do surgimento da pílula anticoncepcional... esses avanços fazem dele um ano tão carregado de simbologia.

·Você diz que espera que daqui a 20 anos 1968 esteja superado. O que você quer dizer com isso?
Por mais importante que 1968 seja, a vida continua. O mundo e o Brasil não podem ficar presos a um passado, é preciso ir em frente. Mas não adianta simplesmente cancelar 1968, negar a sua importância, pois não é dessa maneira que se supera uma data. Se eu fosse atender a todos os pedidos de palestras sobre 1968 teria que me desdobrar. É importante toda essa discussão, é a partir dela que podemos avançar. É importante olhar para ele para compreendê-lo. Só assim ele vai esgotar seu potencial de lições para o futuro.

·Esse desejo de se querer recriar o 1968, seria uma forma conservadora de avaliar o que foi o ano para a história da humanidade?
É mais, é uma forma perigosa, pois não se pode imaginar que é possível repetir o passado. O passado tem que ser analisado para seus erros não se repetirem. É como em um carro, você usa o retrovisor para seguir em frente. Por mais fascinante que seja o que passou, é necessário seguir em frente. Existe uma tendência de se idealizar o passado. É preciso tomar muito cuidado para não querer mimetizar 68. No livro, o Caetano (Veloso) diz que, para ser parecido, teria que ser muito diferente. Eu procuro não ter uma visão nostálgica, mas crítica. Não quis omitir nenhum problema que 68 encerra.

·Qual é a diferença de 1968 no Brasil e no resto do mundo? E as similaridades?
No Brasil, o 1968 teve uma motivação política, por causa do regime militar. Todas as manifestações eram contra a ditadura. Na França, o movimento foi de libertação sexual, começou na Universidade de Nanterre, com os estudantes reivindicando um dormitório misto, e no Brasil a motivação foi a morte de um estudante (Edson Luís de Lima Souto, em 28 de março, no Rio). A cada dez anos há um 68 relembrado, mas sempre com um conteúdo político. O curioso é que a maior herança de 68 é a revolução dos costumes. Isso de maneira geral, sobretudo no Brasil.

·Dos desdobramentos positivos de 68, você destaca alguns como o maior respeito às preferências sexuais e aos direitos da mulher, e o fortalecimento dos movimentos negro e gay. Poderíamos ter chegado mais longe do que estamos hoje?
É muito difícil trabalhar com hipóteses, 68 foi muito longe, às vezes até demais. Talvez a razão de sua permanência tenha sido por antecipar muita coisa de hoje. É claro que alguns avanços tiveram de ser interrompidos, por exemplo, houve uma contra-revolução sexual que foi a Aids. Mas de maneira geral avançou-se muito. É difícil prever ser poderia ter avançado mais. Hoje há até uma espécie de pisada no freio, no plano de comportamento, os filhos ficam mais tempo na casa dos pais. Os tempos são outros, as preocupações dos jovens são outras, como o desemprego e o futuro incerto.

·É o que define a geração atual?
A própria reação a essas preocupações também a definem. É uma geração que pensa mais no presente até porque o futuro não dá perspectivas seguras. Não quero dizer que a juventude atual seja pior ou melhor que a de qualquer outra geração.

·Fala-se muito nas mudanças comportamentais a partir de então. Até que ponto as liberdades conseguidas não foram confundidas com permissividade, seja, por exemplo, nas relações entre pais e filhos ou no próprio convívio social?
Uma das acusações mais comuns é essa, a de que 1968 seria o culpado pelo desregramento que ocorreu depois. É como querer dizer que todos os problemas de um adulto surgiram na infância. Só que na verdade o problema é do que se fez desse legado. É um viés que não é correto. É uma herança mais plural, não pode ser resumida a esse maniqueísmo.

·Você cita as drogas como o legado maldito daquela época. Mas você fala isso por conta dos efeitos do seu uso ou por conta da guerra que se tornou o seu comércio?
Nos anos 60, havia uma coisa experimental, de expansão da consciência. Hoje ela foi apropriada pelo narcotráfico. E há também o fato de não se saber lidar com elas. Poucos países enfrentam a questão de uma maneira mais social do que policial. As pessoas tratam o seu consumo como um caso de polícia, e é um caso de saúde pública. Não há, a longo prazo, uma solução para essa questão.

·Como foi a sua experiência numa rave?
Nessa tentativa de fazer paralelo da juventude atual com a geração de 68 cheguei a ir a uma rave. Há claramente um vestígio de 68 nessa manifestação musical. Aquele visual psicodélico, de paz e amor, a busca da vertigem, tudo isso continua lá. Mas hoje não existe mais uma ilusão, é simplesmente uma fuga, um divertimento. Um prazer que leva a dependência. A maneira de vivenciar as drogas é diferente. A não ser que se seja ignorante aos efeitos. Não falo no uso recreativo, falo no uso de dependência. É preciso discutir isso sem hipocrisia e encontrar caminhos que não sejam só o da repressão.

·Outra herança negativa que você expõe é a "violência edificante". Essa idéia levou boa parte das organizações contrárias à ditadura para a luta armada, cujas ações eram seqüestros, assaltos a bancos e atentados. A idéia de que os grupos criminosos do Rio, por exemplo, seriam filhos desses tipos de ações é verdadeira?
Acreditava-se na violência legítima, e sabe-se hoje que a violência nem nesses casos é legítima. Na verdade não foi isso o que ocorreu. No encontro dos presos políticos com os presos comuns, na década de 70, o que os primeiros fizeram foi orientar as reivindicações, nas formas de mobilização. É um erro atribuir aos militantes daquela época mais esse pecado.

·Você viveu o 1968 no Rio, a capital mais efervescente do país. Você acha que o Brasil inteiro na época tinha noção do que estava acontecendo?
No Brasil, foi um movimento de classe média e não operário. Acredito que não foi só nos principais centros urbanos que a população sentiu que algo acontecia. Estive em Belém agora para um debate e fiquei impressionado, o movimento chegou lá e foi forte.

·Ziraldo e Jaguar são dois nomes marcantes da geração de 68. Como você vê toda essa polêmica em torno das indenizações de R$ 1 milhão que eles aceitaram receber?
Eu acho que a lei de anistia e um instrumento legítimo e universal de reparação. Todo país civilizado que passou por um regime ditatorial tem uma lei dessa. Houve muita distorção nesse processo de concessão de anistia. Mas dizer que é uma bolsa-ditadura também é uma distorção. Em 1995, o sindicato dos jornalistas aqui no Rio de Janeiro entrou para corrigir aposentadorias defasadas. Logo em seguida, a gente viu que tinha gente que nunca tinha pisado numa redação que estava no bolo para receber esse dinheiro. A primeira coisa que fiz foi retirar meu nome daquela lista e escrevi um artigo no Jornal do Brasil justificando as minhas razões. O superintendente tentou me convencer, dizendo que eu estava abrindo mão de um direito. Agora, com esse caso do Ziraldo e do Jaguar, alguém me disse para eu confirmar se meu nome tinha sido retirado da lista. Liguei para um advogado e descobri que, apesar de ter entregado os documentos para retirar meu nome, ele ainda estava lá. Com essa história eu descobri que é mais fácil você receber essa indenização do que recusá-la. Não se pode julgar a lei de anistia pelas distorções.

·Você parece ser um otimista em relação ao futuro. Em que você baseia esse otimismo?
Sou sim, mas como mineiro, eu tenho muita cautela. A gente está sempre olhando com desconfiança. Apostar no futuro é sempre problemático. Só que acredito que o pessimismo leva a uma acomodação, por isso sou otimista, pela capacidade de ação.

Texto:
Carol Rodrigues
Publicada no Jornal A Gazeta no dia 25 de maio de 2008.

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